segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Casamento pós-moderno

Sou um homem casado.
Tenho um casamento igual ao de tantos outros casais que existem pelo mundo.
Mas temos, eu e minha esposa, algumas coisas em nossa relação que nunca notei em outros pares.
A gente se ama.
Eu fumo os cigarros dela. Mas devo dizer que ela fuma bem mais dos meus.
Ela, na maioria das vezes, gosta dos meus amigos, e eu, na maioria das vezes, gosto dos amigos dela.
Ela fica com outros caras, e eu não ligo. Até acho bom. Eu fico com alguns caras, e ela não liga. Até acha bom.
Quando ligo pra ela, falo o que quero falar. Quando ela me liga, antes de mais nada, pergunta onde eu estou, com quem e fazendo o quê.
Saímos quase sempre juntos. Gostamos de beber cerveja e conversar com nossos amigos atravessando a noite.
Não brigamos por causa de música. Ela gosta de MPB, de rock, de samba e de bossa. Exatamente nessa ordem. Eu, na minha ordem, gosto de rock, bossa, samba e MPB. Mas não excluímos outros gêneros, apenas não são tão rotineiros.
Quando saímos, ela dá palpites assertivos no que visto, e eu, sugiro sutilmente o que ficaria melhor pra ela.
Quando fico desempregado, ela, como toa boa esposa, aconselha-me a arrumar um emprego.
Quando ela fica desesperada com o emprego que tem, eu, como todo bom marido, sugiro, também sutilmente, que ela peça demissão.
Não temos filhos, nem pretendemos ter. Sabe, não somos exemplos de conduta pra ninguém, e somos individualistas o bastante para nos entregarmos a mais uma pessoa.
Eu manisfesto de vez em quando a vontade de ser pai. Mas ela logo faz a idéia dissolver em meio aos discursos alarmantes e aflitos que ela sempre profere.
Quando nos casamos, ela era gorda. Depois de quase quatro anos de casamento, ela está magra. Está mais bonita que nunca.
Quando nos casamos, eu pesava 54 quilos. Depois de quase quatro anos de casamento, estou quatro anos mais velho.
Ela não gosta muito da minha barba.
Eu não gosto muito do jeito como ela se comporta quando está irritada.
Vivemos relativamente bem, e muita coisa que ela fala, entra por um ouvido e sai por outro. A recíproca é verdadeira.
Nós não transamos. Nunca o fizemos. Acho que temos um pouco de nojo um do outro.
Somos tão iguais no azar de sermos casamos, que nosso aniversário de casamento é 6 de agosto, o mês dos maus agoros.


terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A velha estúpida

Não sei como nem quando exatamente ela apareceu. Estava em minha vida e quando percebi, ela já me acompanhava há tempos incertos.Não me incomodava tanto inicialmente, pois nunca me pedia favor algum. Mas era feia. Velha, muito velha.
E era chata. Também não sei dizer quando ela ficou assim, ou se já esteve ao meu lado sem manifestar a chatice. Penso que ficou chata com a idade.
Nunca ficava por perto quando eu estava com outra pessoa. Bastava eu ficar sozinho pra ela se aproximar, com seus passos arrastados, irritantes. Sentava-se ao meu lado com dificuldade. Não falava. Eu sim, muito. Nunca tive certeza se ela realmente me ouvia ou se apenas fingia. Ela nunca reagiu aos meus desabafos e confissões.
Ela falava apenas perto de mim. Mas não diretamente comigo. Não fazia monólogos pelos cantos, sozinha. mas se eu chegasse perto, ou se percebesse minha presença, começava a reclamar. E o fazia de todo o gosto, com a maior rabugice que alguém pode expressar. Era muito estúpida mesmo. E burra. Não gostava de música.
Outro dia, não sei bem a quanto tempo exatamente, uma semana, um mês no máximo. Recolhi todos os lençóis em uso na casa e coloquei-os na lavadora. Enquanto a máquina trabalhava por mim, fui até o quarto, liguei a TV e assistia o jornal. Adormeci.
Quando acordei, percebi o silêncio. Os lençóis estavam limpos.
Fui até a cozinha. Bebi um pouco de água, pra poder fumar um cigarro.
Já tendo fumado, comecei a pegar os lençóis e estendê-los no varal.
A velha estava no quintal. Não saia do lugar, observava meu trabalho sem sequer oferecer ajuda.
Coloquei alguns no varal, entrei para pegar mais na máquina. Eram muitos.
Ela gemeu. Caiu. Tentou se apoiar num dos lençóis estendidos. Não adiantou.Agonizava. Fitava minha face quieta. Eu observava. Encarou-me com aqueles olhos castanhos arregalados, com a expressão desesperada.
Agonizou mais uma vez e faleceu.Entrei em casa, peguei o resto dos panos e terminei de colocá-los no varal, para que pudessem secar.
Fui até a defunta. Olhava de cima seu corpo morto, velho. Estava lá, deitada de barriga pra cima. A mão direita no chão havia arranhado o piso do quintal. Tinha sujeira enbaixo das unhas. Deixou pequenas marcas no chão, Afastei-me um pouco. Chutei sua barriga. O corpo balançou. Chutei mais uma vez aquela barriga grandiosa. A velha soltou um pum. Agia repulsivamente até depois de morta.
O lençol no qual ela se apoiou estava no chão. Um lençol limpo no chão do quintal. Como pode ser tão descuidada com a roupa limpa?
Peguei-o e sacudi bastante, pra tirar a sujeita. Por sorte não estava sujo. Arrumei-o no varal, como estava antes.Voltei minha atenção para o esquife outra vez. Fiquei de joelhos, bem perto dela. Peguei a cabeça pelos cabelos, segurei com firmeza. Bati contra o cimento do quintal. Bati até me cansar. Como não sou forte, a cebaça ficou com uma pequena rachadura. Nem chegou a escorrer sangue algum.
A boca dela estava meio aberta. Abri mais, todo o possível. Tentei enfiar a minha mão naquela boca horrenda. Não consegui enfiar tudo. Era uma boca pequena.
Levantei-me do chão. Peguei suas mãos e começei a arrastar o corpo para fora de casa. Levei-o até a lixeira da calçada. O trajeto longo de cimento ralou o corpo da velha bastante. Sangrou um pouco.
Com certa dificuldade eu coloquei o cadáver junto com os sacos de lixo. Sentei-me na calçada, não muito perto da lixeira fedorenta. Esperei a tarde toda, até que o caminhão do lixo passasse. Um dos rapazes que recolhe o lixo pegou tudo, deixou a velha por último. Gritando, chamou um colega, que veio ajudá-lo a pegar aquele monte de carne velha e por no caminhão. O caminhão seguiu. Quando virou a esquina, entrei em casa.
Fui até o varal. Os lençóis estavam secos. Recolhi tudo. Enquanto dobrava os panos, notei a única herança que a velha havia me deixado.
O maldito lençol no qual ela se apoiou para não cair, estava rasgado. Um estrago enorme. Era o único cor de laranja que eu tinha, fazia parte de um jogo. Não havia o que fazer. Joguei no lixo.
No dia seguinte, os meninos do caminhão de lixo recolheram o lençol também.
Deve ter ido parar no mesmo lixão que a velha.
Depois desse dia, sempre que vou me deitar, um pensamento me incomoda.
O que faço agora com as fronhas cor de laranja?